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Intolerância religiosa x racismo religioso: uma herança histórica no Brasil

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Diferente de países como a Argentina, o Afeganistão, o Vaticano e a Grécia, o Brasil é um país laico, ou seja, não tem uma religião oficial.

Religiões de matriz africana, como o candomblé e a umbanda, estão entre as cinco mais seguidas no Brasil, com mais de um milhão de adeptos. De acordo com o IBGE, os católicos praticantes são maioria, com cerca de 123 milhões de fiéis, seguido pelos evangélicos, com 113 milhões.

Apesar do resguardo legal e da variedade de crenças seguidas no país, o número de ataques, violência e desrespeito tem crescido cada vez mais, registrando uma alta de 140,3% em 2023. 

O registro de denúncias sobre intolerância religiosa feitas ao Disque 100, um serviço do governo, cresceu – sobretudo após 2021, um ano depois do início da pandemia da Covid-19. 

Desde janeiro do ano passado (2023), com o endurecimento das leis e a criação da Coordenação de Promoção à Liberdade religiosa – liderada pela Ialorixá Mãe Gilda de Oxum -, quem pratica crimes de intolerância religiosa pode pegar até cinco anos de prisão, além de multa.

É o que diz a lei 14.532, que equipara injúria racial ao racismo e também protege a liberdade religiosa. Para este crime, não cabe mais fiança e é imprescritível.

 

Racismo religioso

 

Segundo o Governo Federal, 39% dos ataques registrados são voltados à religiões de matriz africana, com a cantora Anitta protagonizando o caso público mais recente. Após perder mais de 100 mil seguidores no Instagram, a artista fez uma live falando sobre os comentários de ódio que recebeu por compartilhar imagens de seu novo videoclipe, “Aceita”, que homenageia o candomblé, religião da qual é adepta.

“Eu ainda fico um pouco assustada com a falta de evolução do ser humano. Nos dias de hoje, ainda há um retrocesso tão grande nesse sentido de aceitar, entender, respeitar os caminhos das pessoas”.

 

 

O episódio expõe o quanto a intolerância religiosa tem relação com o racismo e como está marcada na história da humanidade, principalmente porque foi um meio de exercer poder político na sociedade.

 

Herança histórica e sincretismo religioso

 

As religiões de matriz africana no Brasil são diversas, múltiplas. Trazidas para o país junto ao povo africano, elas podem ser divididas de acordo com suas origens. Existem as desenvolvidas no Brasil, como a Umbanda, as afro-brasileiras, como é o caso do Candomblé, e, por fim, as que mesmo originadas no Brasil, se baseiam nos processos de ordem das religiões da África, como o Ketu e o Jêje. 

As religiões Afro-brasileiras surgiram após a junção da cultura de diversos povos africanos trazidos entre os séculos XVI e XIX. Elas possuem influências de religiões vindas da Europa, como o Catolicismo e o Kardecismo. Além disso, elas possuem características específicas de cada região do país.

Durante os quatro séculos, cerca de 3,5 milhões de africanos chegaram ao Brasil como escravos. Entre eles, povos de etnias: iorubás, fons, maís, hauçás, éwés, axântis, congos, quimbundos, umbundos, macuas, lundas e diversos outros povos, cada qual com sua própria religião e cosmogonia.

Como as religiões foram se formando em diversas regiões e estados do país, elas adotaram formas diferentes umas das outras, inclusive os nomes. As que mais se destacaram na época, assim como nos dias de hoje, são o Candomblé e a Umbanda. 

 

Candomblé

 

O Candomblé uma religião regionalizado no Brasil, porém com características trazidas pelos negros da África. Como nessa época a Igreja Católica proibia os rituais africanos, os negros usavam as imagens católicas como símbolo, mas continuavam cultuando seus Orixás, Inquices e Vodus. 

Para o Candomblé, os orixás são deuses supremos, possuindo habilidades e personalidades diferentes, assim como as formas de rituais. Estes também escolhem as pessoas que utilizam para incorporar no ato do nascimento, podendo compartilhá-lo com outro orixá, caso necessário. 

 

Umbanda

 

A Umbanda é uma junção de diversas religiões que chegaram ao Brasil, como o catolicismo, espiritismo e as religiosidades africana, indiana e indígena. Bastante confundida com o candomblé, a Umbanda possui três princípios básicos que são: fraternidade, caridade e respeito ao próximo.

Seus fundamentos são:

  • Existência de um único Deus, supremo e onipotente, conhecido como Zambi, Olorum ou simplesmente Deus;
  • Existência dos orixás, seres do Plano Superior que representam, cada um à sua forma, elementos da natureza, do planeta ou das próprias características humanas;
  • A mediunidade como forma de comunicação entre as esferas física e espiritual;
  • Crença na alma imortal e na reencarnação;
  • Crença na Lei Cármica, no qual se baseiam as ações do homem e suas consequências;

 

Por que “racismo religioso” e não apenas “intolerância religiosa” ?

 

“Ao falar de intolerância religiosa a gente acaba tratando dos sintomas e não da doença. A gente acaba lidando com as manifestações e não com a estrutura em si. E eu acho que não adianta a gente lidar o tempo todo com os casos, mesmo que juridicamente, se a gente não consegue chegar na estrutura racializada do nosso país, do Estado, e a partir disso enfrentar o problema que é desestruturar esse racismo”, ressalta Gabriela Ramos, advogada, Yá Leyn do Ilê Axé Abassá de Ogum, em entrevista concedida ao Jornal baiano Brasil de Fato.

 

Os pesquisadores que se debruçam sobre o racismo religioso explicam que ele é um dos tentáculos do racismo estrutural, a complexa engrenagem política, econômica e social que faz dos negros brasileiros uma minoria em termos de poder, embora sejam a maioria numérica (56% da população nacional).

 

É por força do racismo estrutural que esse grupo tem a renda mais baixa, ocupa os piores postos de trabalho, assume poucos cargos políticos, é a maior vítima da violência, ocupa grande parte das vagas dos presídios, tem menos escolaridade, mora nos bairros mais precários, morre mais cedo etc. 

 

 

A historiadora Valquíria Velasco explica que a grande acusação que recai sobre as religiões de matriz africana é a de que idolatram o demônio e praticam o mal. Confira um trecho de sua fala:

 

“A demonização dessas religiões é algo que vem desde os tempos da colonização. O estigma colou. Na realidade, não há nada mais manipulador e falso. O demônio é uma figura que não existe nas religiões afro-brasileiras. Da mesma forma que inúmeras outras religiões, incluindo a católica, as umbandas e os candomblés acreditam em Deus, são monoteístas, pregam o amor, defendem valores morais e sociais, contam com orações, cânticos, danças e oferendas e têm sacerdotes que vestem roupas especiais e celebram cultos”.

 

Há, contudo, uma diferença importante. De acordo com a historiadora, as religiões de matriz africana não se julgam superiores, são tolerantes à diferença, não acusam as demais crenças de serem erradas e não têm o arrebanhamento do maior número possível de novos seguidores como missão. Em sua dissertação de mestrado, também produzida na UFRJ, Velasco estudou a perseguição religiosa nas primeiras décadas da República brasileira.

 

Ela encontrou em jornais e inquéritos policiais da época inúmeros relatos sobre terreiros que foram fechados e seguidores mandados para a prisão. O Código Penal de 1890 enquadrava quem praticava “o espiritismo, a magia e seus sortilégios” e usava de “talismãs e cartomancias para despertar sentimentos de ódio ou amor”, com pena de multa e até seis meses de prisão. Era o que bastava para transformar pais e mães de santo em bandidos.

 

Reportagem publicada em 1918 na Gazeta de Notícias Biblioteca Nacional Digital

 

Os estudiosos advertem que, quando o racismo religioso é tolerado e prevalece, a democracia se enfraquece e corre o risco de ruir. Por isso, a conscientização sobre o real problema e sobre o que está por trás da intolerância religiosa voltada às crenças de matriz africana é tão importante. 

 

“A sociedade que é racista e não abre espaço para a diversidade é necessariamente violenta. Os indivíduos que assistem passivos à perseguição de minorias podem imaginar que aquilo não os afeta. Esse ambiente, no entanto, torna-se propício à perseguição de vários outros grupos no futuro, e inclusive aqueles que se acham blindados podem de uma hora para a hora se tornar o novo alvo. Numa sociedade excludente, todos são potencialmente vulneráveis”, conclui a historiadora Valquíria Velasco.

 

Quer saber mais sobre o assunto e ficar por dentro de todas as problemáticas que envolvem o tema? A Canndu desenvolveu em parceria com o Ministério Público do Trabalho em Goiás (MPT-GO) uma campanha mega importante de conscientização que busca, além de levar informação, abrir os olhos da população sobre os riscos da intolerância religiosa para a democratização no país. 

 

Acesse o site do MPT-GO e fique ligado nas nossas redes sociais.

 

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